No ano passado publiquei um texto com o título: “Tudo que eu gosto no carnaval”. Com exceção ao título, era um texto com 0 caracteres.
Muita gente não entendeu. Outros acharam que eu havia esquecido de inserir o texto ou que era algum bug do site. Esse ano resolvi fazer diferente.
Entendo que para a maioria dos seres humanos a vida não é fácil. A dinâmica econômica e social do mundo faz com que à exceção de alguns poucos que podem usufruir da vida da forma que bem entenderem, a arrebatadora maioria de nós não é livre. Liberdade é um conceito muito subjetivo e um substantivo banalizado. De maneira bem superficial, ser livre é ser dono da própria agenda. Quem é?
Na prática, aqueles de nós que possuem um trabalho servem como uma engrenagem para todo o sistema capitalista funcionar. Não me entenda mal, eu não sou anticapitalista, muito pelo contrário. Acho que os poucos países que chegaram mais perto de uma condição de equidade com altos níveis de qualidade de vida dos seus cidadãos são capitalistas. Aqueles que tentaram pular essa etapa faliram retumbantemente ou de fato atingiram a condição de equidade: todo mundo é pobre.
Fato é que ser essa engrenagem do sistema eventualmente pode ser muito massacrante, principalmente quando se vive em grandes megalópoles, inseguras e desorganizadas. Vive-se como gado, no trânsito, no transporte público lotado ou nas ruas das cidades. Nem a pandemia de COVID-19 conseguiu deixar o legado do trabalho remoto e aos poucos, as empresas estão requerendo a presença de seus funcionários, cujo trabalho em si poderia ser feito de qualquer lugar do planeta, mas o “dono” precisa controlar a vida do funcionário. Não basta cumprir as metas e acordos estabelecidos entre eles. “É muita mamata”.
Assim, a pressão aumenta, o estresse aumenta e vamos quebrando, mas tudo bem! Engrenagens funcionam por hora trabalhada e não por desempenho. Quando ela estoura é substituída por outra.
E nós estouramos. Essa condição de vida precária que eleva o cortisol no sague à níveis estratosféricos com alta frequência, nos traz problemas de saúde. Assim, nós não vendemos apenas força de trabalho, nós vendemos nossa saúde e vendemos a um preço muito pequeno.
O cenário não é bonito. Provavelmente por essa razão é que existe tanta euforia pela chegada da sexta-feira ou pelo próximo feriado prolongado. “Sextou”. É compreensível, mas deprimente. Dos 365 dias no ano quantos deles vive-se livremente, de fato? 65 na melhor das hipóteses? Nos outros 300 vive-se em uma prisão oculta, uma máquina de moer carne humana.
O carnaval consegue juntar essa fuga do feriado prolongado com a permissão para extrapolar limites físicos e morais que, a princípio, não seriam aceitos em outros dias do ano. É um prato cheio para extravasar toda essa angústia e essa pressão do dia a dia.
O contexto histórico e cultural do carnaval parece ser uma mescla de várias festas e costumes antigos. É uma festa pagã apropriada pela igreja católica, que marca o início do período da quaresma, ou seja, os 40 dias que antecedem a Páscoa nos quais não se deve consumir carne, no sentido literal e figurado. Talvez fosse uma forma da igreja controlar os desejos dos fiéis, permitindo que cometessem diversos excessos antes do período de rigorosidade religiosa.
Lendo os textos de diversos autores sobre a origem do carnaval, a impressão que se tem é que eram dias nos quais o mundo poderia funcionar de cabeça para baixo, segundo os costumes antigos: serviçais se vestiam de senhores, homens de mulheres (daí a origem das fantasias), orgias e bebedeiras eram toleradas.
O carnaval nunca fez parte da minha vida. Eu busco todos os anos passar por esse período aproveitando meu tempo produzindo alguma coisa e evitando contato com qualquer manifestação da festa.
Minha escolha.
Essa escolha vai muito além da música e da dança que eu não aprecio. Só por essa razão não vejo problema algum: o que seria do azul se todo mundo só gostasse do amarelo? Jogo do bicho, tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, acidentes de trânsito, comas alcóolicos nos prontos socorros, estupros e ruas abarrotadas de urina e sujeira por onde os “bloquinhos” passam. Não há festa que justifique isso.
Por essa razão, a despirocada geral nessa época do ano jamais será justificável para mim. É compreensível, dada a forma opressora com que vivemos, mas não justificável. Existem muitas alternativas de alívio do estresse, de uma forma contínua, equilibrada e eficiente, mas geralmente isso envolve aprender ou praticar alguma coisa com disciplina e muito estudo, coisas que estão altamente demodê hoje em dia.
A despeito da eficiência duvidosa a longo prazo, é muito mais fácil para aliviar o estresse recorrer aos instintos mais primitivos do animal Homo sapiens sapiens (nem tão sapiens assim) no carnaval: comer, beber e transar.
O máximo que puder.