Outro dia, após levar minha filha mais velha a uma consulta médica, chamei um uber para voltar para casa.
O carro chegou, era um homem com idade provável entre 40 e 50 anos. Cumprimentei-o, pedi licença e entramos no carro. Estava tocando alguma música do Bon Jovi.
Apesar de não ser um grande fã de Bon Jovi, achei bacana, pois conheço muita coisa do que eles produziram, principalmente na década de 1980 e 1990.
A sensação de ouvir Bon Jovi ao entrar no carro foi um alívio porque geralmente, ou os caras estão ouvindo um pagodinho bem enlatado, sem vergonha, ou aquele sertanejo chechelento de dar vontade de enfiar uma agulha de tricô no ouvido e furar os tímpanos só para ter o alívio de parar de ouvir aquela tortura.
De repente, o motorista passou a música. Percebi então que era alguma playlist de serviço de streaming ou algum pendrive com arquivos de música. Portanto, teoricamente, seja lá por onde as músicas estavam sendo reproduzidas, deveria ser um conteúdo do agrado dele.
ACDC! A coisa estava melhorando, pelo menos para mim. Black in Black, um clássico universal do rock. Pensei: “o cara deve achar Bon Jovi um som muito fraquinho, por isso passou pra frente. Queria ouvir mais peso. Legal!”.
Pouco mais de um minuto, passou de novo.
METALLICA! Sad But True. Outro clássico incontestável e a prova de que música pesada nem sempre precisa ser rápida, muito pelo contrário. Pensei: “agora vai!”.
Não chegou nem no primeiro refrão…passou de novo. E assim foi fazendo durante os 30 minutos que durou aquela corrida. Música, após música.
Uma música, assim como um filme, tem uma estrutura e uma estratégia. É uma jornada em que o compositor vai levando o ouvinte por uma estrada desconhecida e as vezes ele o surpreende, outras vezes ele dá justamente o que o ouvinte está esperando. É esse jogo que quando bem feito diferencia os homens dos meninos na composição. Para experimentar o que o compositor planejou para você é necessário ouvir a música INTEIRA. Mais do que isso, eu sou da opinião de que na maioria dos casos é necessário ouvir o álbum inteiro para se ter a dimensão do significado daquela obra. Pouquíssima gente faz isso hoje.
Me dei conta de que aquele sujeito do uber sofre do mesmo mal que as crianças e os adolescentes vem sofrendo: a síndrome do vídeo de 15 segundos.
Antes de mais nada eu preciso admitir: o cara que criou o Tik Tok é um gênio! Assim como Oppenheimer, um dos cientistas que desenvolveu a bomba atômica. Invenções inteligentíssimas a serviço da destruição.
O Tik Tok e todos os que o copiaram depois, como o Instagram com os “reels” e o Youtube com os “shorts” criaram uma forma de capturar nossa atenção de forma viciante, com vídeos curtos e efêmeros, geralmente sem agregar nenhum tipo de informação muito complexa, apenas anestesiando nosso cérebro e nos estimulando a passar para o próximo, para o próximo, para o próximo….em um looping esquizofrênico que as vezes faz as pessoas ficarem horas nesse processo, como se hipnotizadas estivessem. É isso o que as redes sociais querem. Quanto mais tempo as usamos, mais propagandas elas conseguem nos mostrar, mais negócios são realizados, fazendo com que as empresas invistam mais em propaganda e as estratégias sejam cada vez mais agressivas para prendernos nos aplicativos.
Você nunca parou para pensar em como essas big techs ganham dinheiro? É na publicidade. Oferecem um serviço de compartilhamento de fotos, ideias e contato entre pessoas, mas isso não gera lucro. O que as mantém é o marketing digital.
Isso está se tornando tão grave e banalizado que as pessoas não conseguem mais se sentar por duas horas para ler um livro ou assistir a um filme, pois isso demanda maior concentração e capacidade de concatenar ideias e expectativas. Entretanto, essas mesmas pessoas conseguem ficar duas horas deslizando o dedo para cima assistindo vídeos de gatos tocando piano, ou pessoas pregando sustos em outras ou qualquer outro conteúdo absolutamente irrelevante e viral nas redes.
As vezes sugiro às minhas filhas assistirmos a algum clássico do cinema e é comum eu ouvir: “2h30 de filme?? De jeito nenhum”. Entretanto são capazes de maratonar uma série ou ficar vendo vídeos no youtube por uma tarde inteira. Interessante essa relação com o tempo, não? Essa relatividade Einstein não considerou.
Até pouco tempo atrás eu pensava ser um problema a ser enfrentado pelos que nasceram dos anos 2000 pra cá, mas vejo que não. Muita gente das antigas deixou se levar pelo conforto de manter o cérebro bem anestesiado, calminho. As opções para isso hoje são as maiores da nossa história. Só se pensa em algum tema profundo de verdade quem nada contra a maré…e isso cansa. Já diria Descartes: “Penso, logo desisto”. Não era isso? Ah, não…esse era o Casseta e Planeta. Eles foram clarividentes!
Eu acho incrível ter um dispositivo no bolso capaz de resolver meus compromissos financeiros, agendar eventos, atender clientes, trocar mensagens com amigos, checar se está tudo bem com os filhos, fazer compras, pesquisar sobre astrofísica, fazer fotografias, ler notícias, ouvir música, buscar bula de remédios… a questão, como sempre, não é o que a humanidade cria e sim a própria espécie humana, que em linhas gerais se comporta como rebanho e é presa fácil para as estratégias de marketing.
Tudo que aparece de novo, afeta os hábitos e costumes dos seres humanos e é sempre muito criticado. Eu vivi vários desses paradigmas: a internet, a automatização das indústrias e a globalização eram os assuntos que mais nos aterrorizavam, principalmente na escola. São grandes crises, porém que foram incorporadas e adaptadas bem ou mal ao cotidiano dos cidadãos.
Eu imagino que quando surgiu a primeira calculadora deve ter havido críticas. Talvez o primeiro agricultor que resolveu fazer um arado grande e prender em um boi para tracioná-lo deve ter sido criticado também. Entretanto, toda inovação que não tenha um benefício claro agregado, muito pelo contrário, vai gerar resistência de pessoas um pouco mais analíticas. Você já parou para refletir, por exemplo, porque o Tik Tok, um aplicativo chinês, não existe na China? Há um similar, da mesma empresa, porém não tem conteúdos com dancinhas e outras idiotices. Por que será?
Eu sempre digo aos meus filhos: vocês estão tendo uma oportunidade única nessa geração. As pessoas estão emburrecendo e se mantendo infantilizadas cada vez mais. Pessoas um pouquinho mais preparadas, equilibradas e racionais vão mandar no mundo. Vocês precisam fazer essa escolha: querem ser o cão pastor ou o rebanho?