Em novembro de 2017 eu tive a oportunidade de ir à trabalho, desempenhando minha função como técnico do órgão ambiental e não como fotógrafo, à Acra, capital de Gana. Foi a primeira vez que pisei em solo africano. Apesar das origens daquele povo serem diferentes das dos negros que vieram, ou melhor, foram trazidos ao Brasil (distinção MUITO importante), a minha expectativa era grande em conhecer aquele povo, seus costumes e tradições.
Frustação pura.
Diferentemente de outros países, nos quais fiz o mesmo tipo de trabalho e nas horas livres circulava sem qualquer problema a pé pelos arredores, utilizava transporte público, fazia compras, etc., em Acra por motivos de segurança, fomos fortemente induzidos a não deixar as dependências do hotel sozinhos de forma alguma. Havia representantes de dezenas de nações naquele encontro e ficou evidente o receio dos responsáveis pela organização da reunião em se responsabilizar por qualquer infortúnio que pudesse ocorrer com algum dos membros daquele grupo de especialistas em resíduos sólidos do mundo todo.
Em um dos dias da reunião, no entanto, havia uma saída programada para conhecermos um lixão muito famoso na região oeste de Acra.
Aqui faço um adendo informativo de utilidade pública importante: lixão e aterro sanitário são locais de depósito de lixo completamente distintos. Um aterro sanitário é um local no qual os resíduos são dispostos de forma ordenada, planejada, com base em um projeto de engenharia que contempla as obras de movimentação de terra, drenagem e gerenciamento adequado de líquidos e gases gerados pela decomposição do lixo, controle de vetores de doenças, ruído, poeiras e mais uma série de monitoramentos ambientais preventivos. São obras licenciadas, portanto, que passaram por critérios adequados de seleção de área, aprovadas pelo Órgão licenciador.
O lixão? Não tem nada disso. É um local de depósito de lixo diretamente sobre o solo, sem planejamento, sistemas de proteção ambiental ou critérios operacionais, fazendo com que tenham grande potencial poluidor. No Brasil, assim como em muitos países do mundo, lixões são proibidos.
Voltando à Acra: o lixão que iríamos visitar não era qualquer lixão. Tratava-se do maior local de descarte de resíduos eletroeletrônicos DO PLANETA TERRA. Lá, centenas (talvez milhares) de pessoas trabalhavam desmontando os aparelhos e recuperando metais para venda como material reciclável. Crianças, homens, mulheres e idosos recolhiam placas-mãe de computadores, desmontavam refrigeradores, recuperavam cobre dos fios, dentre outras coisas, de maneira insalubre e promovendo enormes danos ambientais e à saúde humana.
O desmonte de refrigeradores antigos, por exemplo, sem quaisquer cuidados, liberam para a atmosfera aerossóis, como o famoso CFC, responsável pela redução da camada de ozônio. Entretanto, de longe o que mais chamava a atenção era a recuperação do cobre dos fios elétricos, realizada simplesmente mediante a queima de sua capa de proteção a céu aberto. Essa era com certeza a atividade mais executada, sendo que havia centenas de pequenas fogueiras acesas em qualquer direção que se olhasse, emanando fuligem e gases tóxicos sem qualquer controle, oriundos dessa queima descontrolada.
O cenário era desolador, rememorando cenas à lá Mad Max. Não me recordo exatamente o sujeito, mas algum dos representantes do Governo nos disse naquela ocasião que a expectativa de vida dos trabalhadores daquele lixão não chegava a 50 anos. Pudera, anos e anos respirando aquela fumaça tóxica saturada com substâncias a níveis estupidamente superiores a qualquer padrão de qualidade do ar. Mais do que isso, as dioxinas, substâncias tóxicas e bioacumulativas associadas a processos de queima, se espalham pelo ar e contaminam o solo, que por sua vez, contaminam as plantas, contaminando os animais que as consomem e no fim da cadeia, contaminam os seres humanos.
Infelizmente tenho poucos registros de lá. Eu fiquei tão perplexo com aquela situação que mal fiz fotos, mal consegui conversar com meus pares, mal consegui comer naquele dia e fiquei com uma sensação de vazio por vários dias, mesmo depois de retornar ao Brasil.
Obviamente que grande parte dos resíduos que chegam em Acra são enviados de maneira ilegal com origem na América do Norte e Europa, porém, aparentemente a grande parcela desses materiais são oriundas da importação de produtos eletrônicos de segunda mão, advindos dessas mesmas regiões de maneira legalizada.
Traduzindo: o que não tem mais serventia para um europeu ou um estadunidense, por exemplo, pode ser enviado e ter uma sobrevida para utilização de um africano. O grande problema nessa dinâmica macabra é que posteriormente, quando o eletrônico já não tem serventia para ninguém, o gerenciamento do resíduo fica sob responsabilidade de países sem parque industrial significativo ou tecnologia ambientalmente adequada para recuperação e/ou disposição final, gerando impactos ambientais e sociais irreparáveis.
Agora me explica: que mundo é esse???
Veja, eu não sou um anticapitalista. De forma alguma. Aliás, a despeito da minha ignorância magnânima em ciências humanas, eu acredito que nós só conseguimos atingir uma condição de bem-estar social por meio do capitalismo. É preciso gerar riqueza para distribuí-la e não vejo nenhuma razão no princípio de que o capitalista só enriquece em função da exploração do trabalhador. Discordo completamente dessa lógica maniqueísta do explorador versus o explorado. No entanto, abrir mão de certos controles estatais e acordos internacionais globais, convergindo a um liberalismo feroz da economia, fatalmente gerará situações como a que presencial no lixão de Acra.
Eu confesso que muitas vezes lembro daquela situação e, andando pelas periferias da região metropolitana de São Paulo, como geralmente faço, busco paralelos. E os encontro. Obviamente não testemunho situações tão graves como a do lixão de Acra, mas crianças brincando descalças em meio ao esgoto clandestino, ocupações em áreas com risco de deslizamento ou em áreas contaminadas, sem dispositivos urbanos adequados são muito comuns. Na verdade, de dentro da nossa bolha muitas vezes não percebemos que na realidade talvez essa seja a situação da maioria da população brasileira.
Não tenho autoridade, nem conheço a fundo estatisticamente as condições socioeconômicas da nossa população, mas penso: se na região metropolitana da capital do Estado mais rico do país eu vejo o descaso similar ao que vi em Gana, fico imaginando como é a situação no Estado mais pobre do Brasil. E nunca deixo de me perguntar, pessimista: isso aqui tem jeito?