ALÉM DA FOTOGRAFIA

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A relativização da beleza

A beleza não é relativa. É absoluta.

Sim, já começo largando a granada, pois minha opinião sobre esse assunto não é tida como politicamente correta e pode desagradar muita gente. Dessa forma, caso discorde e não seja alguém aberto a refletir sobre o contraditório, poupe seu fígado e já feche a janelinha do navegador.

Há uns dias atrás eu entrei no carro para ir ao escritório, abri o aplicativo de streaming de música e apertei o ”play”. Continuou sendo reproduzido o que eu estava ouvido no dia anterior: a Sinfonia nº5 de Mahler.

Bem naquele instante começou um dos movimentos mais lindos dessa sinfonia: o “Adagietto”, quarto movimento. Aumentei o volume. Você só consegue de fato apreciar música, saboreando todas as frequências e timbres, se utilizar bons fones de ouvido ou ouvir dentro do carro, com vidros fechados e com um volume adequado. De uns anos para cá, qualquer veículo que saia com equipamento de áudio de fábrica, tem boa qualidade.

Meu trajeto de casa para o escritório dura apenas 15 minutos e naquele dia, o trânsito estava bem tranquilo. A avenida que utilizo é antiga, estreita e sinuosa, com poucos semáforos e cruzamentos. A cada curva que passava minha mente ia me transportando para outro lugar: eu passei a enxergar a orquestra sobre o palco, o maestro conduzindo, a textura da família das madeiras, o reflexo dos metais e até a gota de suor na testa do oboísta.

Vim refletindo sobre como aquele movimento era perfeito. Eu duvido que qualquer compositor atual ousaria sugerir a alteração de qualquer nota, qualquer pausa, qualquer dinâmica nele. Aquilo é a definição de perfeição. É tornar palpável o divino.

Assim como a obra de Gustav Mahler, a de muitos outros compositores, artistas plásticos, escritores, escultores e demais artistas conseguem atingir um nível tal, que unem a perfeição técnica com a subjetividade emotiva que cativa boa parte das almas humanas.

Eu acredito que em todas as artes, a humanidade atingiu o ápice da beleza. Acredito que isso veio acontecendo da renascença até o século XIX. Foram 2 a 3 séculos de explosão cultural, que deram lugar à explosão científica pela qual ainda estamos passando.

Entendo que haverá sempre o questionamento sobre a relatividade da beleza, porém discordo. Nosso cérebro funciona com padrões e não adianta negá-los. Nossa espécie evoluiu para o que é hoje em função do reconhecimento desses padrões. É preciso diferenciar a beleza das artes com tendências pessoais. Nossa vida moderna e confortável nos permite nem sempre gostar do que é bonito.

O fato de termos atingido o ápice da beleza nas artes traz consigo um movimento no sentido contrário: uma vez que é praticamente impossível saltar muito além em um sentido, busca-se inverter o sentido deste vetor, desconstruindo todo o padrão de beleza e obtendo resultados completamente opostos, o que é muito legal quando é feito de forma consciente!

Picasso não criou o cubismo porque acordou um dia, do nada, sem nunca ter pegado um pincel nas mãos e resolveu pintar um monte de pessoas com olhos no pescoço e seios no nariz. Picasso dominou as artes plásticas com perfeição. Estudou muito, se desenvolveu, até que, amadurecido, passou a desconstruir todos os padrões e criar seu próprio estilo. Admiro muito seu legado, não pela beleza, mas por ser agressivo, de vanguarda e subversivo.

Agora, cá entre nós, um adolescente tardio de 20 anos, aspirante a artista, que acorda em uma manhã nublada, de mal humor porque a mãe dele colocou pouco toddy no leite e resolve jogar um balde de tinta em uma tela não é Picasso.

Da mesma forma, alguém sem experiência e conhecimento no mundo da fotografia que fotografa um par de havaianas velhas jogados em uma sarjeta e posa de artista, também não faz qualquer sentido, além da busca narcísica de alimentar seu próprio ego. Desculpe-me, só houve um Mozart.

Na música, da mesma maneira que escuto compositores eruditos barrocos, clássicos e românticos, também escuto bandas de Trash metal, com guitarras distorcidas, vocais sujos e percussões que são um tapa na orelha. Esses músicos, quase que integralmente são profundos conhecedores de música, que desconstroem o belo para fazer suas criações artísticas, buscando uma estética agressiva e subversiva, no entanto fazem isso de forma consciente. É muito comum flagrá-los em vídeos nas redes sociais tocando compositores clássicos no piano, no violão ou até mesmo na guitarra.

Situação muito diferente é aquela na qual um sujeito com o elástico da cueca aparecendo grava um ruído em um fundo de quintal, sem qualquer zelo técnico, noções de composição e harmonia, percussão similar a uma colher batendo em um copo e aquela voz que nem os recursos de auto afinação dos softwares mais modernos consegue salvar. Esse cara sequer conhece o belo para poder desconstruí-lo. Ele faz desse jeito por falta de preparo, habilidade e também ciência do que é bonito. Ele não tem referências.

O problema em si não é o fato do sujeito com o elástico da cueca aparecendo fazer uma “música” ruim. Aliás, o elástico da cueca aparecendo é feio pra danar, mas nem é um problema. O problema é a tentativa de vender essa “música” como algo bonito. Eu enxergo nisso duas tendências: a primeira, a de eximir o Estado e as famílias de prover adequado acesso cultural e educação às crianças, que um dia virarão adultos, críticos e inconformados. O segundo aspecto é mercadológico. Uma “música” de fundo de quintal pode ser feita em uma tarde, com meia dúzia de batidas pré prontas, um computador e uma letra falando de uma obscenidade qualquer. Michelangelo demorou 2 anos para esculpir o incrível Davi. Mahler também demorou 2 anos para compor a Sinfonia nº 5… Mercadologicamente o que é mais vantajoso oferecer às massas que não tem internalizado o conceito do que é belo?

Isso se aplica a qualquer ramo da arte e do entretenimento, principalmente porque essas coisas se confundem muito atualmente. Tudo é entretenimento: arte, esporte, jornalismo…não creio que seja um bom caminho. Aliado a isso, há um discurso que enaltece o tosco, que ignora as formalidades e a técnica, como se qualquer um pudesse se tornar qualquer coisa de um jeito fácil. É a síndrome dos vídeos de 15 s. Qualquer pessoa pode se dizer fotógrafo ou artista. Qualquer pessoa pode gravar uns barulhos no fundo do quintal, com sonoridade de colher batendo em garrafa de vidro e dizer que é músico. É a democratização da arte! Que lindo!!!

É triste e não sei se há retorno. Felizmente, ainda há nichos para o belo. Pequenos, mas leais e interessados, muito diferente da volatilidade da cultura popularesca, que um dia já foi representada pelo choro e pelos folhetins e hoje tem como heróis uns caras com a roupa de numeração três vezes maior, cowboys perfumados que nunca montaram um cavalo e só falam sobre bebedeira e pegação e moças seminuas “empoderadas” exibindo e utilizando seus corpos de modo a contraditoriamente fortalecer os fetiches mais machistas desse mundo.

Viva o belo! Não o “cantor”. O belo, mesmo.

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